Resumo do livro Os Sertões (Euclides da Cunha)

Trilogia clássica épica monobloco escrita por Euclides da Cunha, um engenheiro de personalidade obsessiva e passional, temperamento artístico abundante, natureza arredia e turbulenta, inteligência diferenciada. “Os Sertões” é um livro de geografia, sociologia, antropologia, geologia, história e filosofia. Terra, Homem e Luta, 3 em um só : “Os Sertões”. Em “Terra” descreve-se toda a região geográfica do nordeste nos mínimos detalhes. Pequeno trecho exemplar : “O deserto invoca o deserto. A terra parece ter uma crescente receptibilidade ao flagelo. O alto grau termométrico das canículas prenuncia febres altas daquelas sessões monstruosas e enfermas do martírio secular da terra. O aspecto atormentado da paisagem na flora agonizante e natureza torturada, sacrificadas por dias esbraseados e noites frigidíssimas, revela todos os estigmas de uma longa batalha surda, cuja hora mais silenciosa e lúgubre não é à meia-noite, é ao meio-dia. O sol bombardeia a prumo, ataca sem fazer sombras, penetra fundo nos grotões queimando sem dó com seus raios verticais e ardentes. Transverbera nas rochas expostas, reflete nas chapadas nuas e é repelido pelo solo recrestado e duro. Sobe lento como que um bafo quente de ares irrespiráveis que deprimem e exaurem. A natureza queda-se, enervada em quietude absoluta. O ar pára. Ondulações rápidas e ferventes criam uma transparência embaçada e sinistra junto ao solo que pega fogo. Magnífica desolação ardendo em 48°C. É a desgraça secular e espetacular das canículas dos sertões.” Em “Homem” descreve-se o nordestino dos sertões. Pequeno trecho exemplar: “O sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. Fez-se homem quase sem ter sido criança. Cedo encara a existência pela rota dos espinhos. É um condenado à vida.” Em “Luta” relata a guerra de Canudos, nos sertões da Bahia, deflagrada num movimento popular religioso e atrasado contra o regime republicano. Pequeno trecho exemplar: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo na precisão integral do termo, caiu no dia 5 ao entardecer, quando cairam seus últimos defensores que todos morreram. Eram quatro apenas. Um velho, 2 homens feitos e uma criança, maltrapilhos, esqueléticos, alquebrados e famintos, na frente dos quais rugiam raivosamente 5000 soldados. Ao velho, macabramente, foi lhe perguntado como queria morrer. Com indiferença altiva respondeu: “de tiro”. Na base da sacanagem extrema, um soldado empurrou-lhe uma faca na garganta. A primeira onda de sangue quente borbulhou escumando à passagem do último grito gargarejado na boca ensangüentada: “viva bom Jesus!”. Aquilo tudo não era a aplicação severa da lei, era da nacionalidade a mais besta e autofágica das vinganças!, o maior dos genocídios na história do país..”. Neste confronto imbecil e humilhante para a história dos brasileiros, uma figura se celebrizou. Foi Antônio Conselheiro, líder religioso dos sertanejos, uma espécie de versão antiga, ocidental e tupiniquim de um ayatollah. Veja como Euclides descreveu seu fim (o defunto na sepultura): “O cemitério, um casebre destroçado. Estava mais perto do céu, pouca terra o cobria. O sudário, um lençol imundo. A face horrenda empastada de escaras e sânie. O corpo putrefato e hediondo, um arcabouço em ruínas, uma massa escura, fétida e angulhenta de tecidos decompostos devorados pelo mais vulgar dos trágicos analistas da matéria: a repugnante varejeira faminta aos milhares, estirado numa esteira de tábuas velhas carunchadas e podres, envolto no velho hábito camisolão azul de brim americano desbotado e roto, gravetos de mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra”. Euclides fala pouco das mulheres. Mas aí está sua visão dramática, bombástica, quase irônica: “Mulheres de Canudos, um sem número delas, velhas espectrais, feiticeiras do chiqueiro africano das bruxarias, moças envelhecidas, desdentadas, grenhas revoltas despenteadas e cheias de terra, escaveiradas, menstruações solidificadas em escaras pretas empastando enormes cabeleiras pubianas repugnantes, a anti-higiene da miséria e do primitivo, o espetáculo da pobreza máxima na máxima fedentina, filhos escanchados em quadris desnalgados ou encarapitados às costas ou dependurados pela boca sugando peitos murchos. Criaturas femininas monstruosas e crianças esmirradas de ossos estufados, configurando caqueirada humana de carcaças e molambos de corpos repulsivos em andrajos”. O triunfo maior de “Os Sertões” é a linguagem. O estilo enredado como um arabesco é grandioso pela eloqüência e pela plasticidade das frases, em que prevalece um vocabulário raro e culto. Uma paisagem, a vida, qualquer coisa, tudo parece tensionado por uma dramaticidade que surpreende e encanta. E em tudo vaza a índole forte e irreverente de Euclides cravada numa inteligência elástica e universal processada por um cérebro em ebulição. O que se perde em lucidez na leitura social ou nos julgamentos pessoais de um pseudocientificismo de raças, ganha-se em dobro com a força extraordinária e inigualável de estilo. Um livro que quase não foi publicado. Euclides era um sujeito tão diferente que dizia que escreveu tudo aquilo sem intenção de torna-lo público. Seus amigos é que o fizeram. Uma engenharia explosiva de expressão escrita – única no mundo… que quase não explodiu.